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Carolina Cerqueira
Publicado em 14 de junho de 2025 às 11:00
Em 2025, a explosão na fábrica clandestina de fogos de artifício em Santo Antônio de Jesus completa 27 anos. Na verdade, é preciso situar você, leitor, de que estamos falando da explosão mais grave que aconteceu na cidade, em 1998. Porque os casos de acidentes em locais de confecção de fogos por lá não param de acontecer. No mês ado, mais uma leva de produtos ilegais foi apreendida. >
O município, segundo o Ministério Público do Trabalho, é um dos que concentra a atividade clandestina na Bahia, junto com Muniz Ferreira, Cruz das Almas e Serrinha. No estado, nenhuma empresa está autorizada a fazer a produção de fogos de artifício. O mercado baiano regulamentado é dominado pelos produtos que vêm de Santo Antônio do Monte, em Minas Gerais. >
“É uma questão histórica e cultural. Antigos produtores am isso para os filhos e netos e, assim, a clandestinidade continua”, diz o procurador do MPT Ilan Fonseca. Foi assim com a família de Osvaldo Prazeres Bastos, conhecido como Vardo dos Fogos. Ele, que morreu de infarto em 2021, era um dos responsáveis pela fábrica que explodiu. Foi o filho dele que foi preso na operação do mês ado. Outro filho foi preso em 2023 e, depois, em 2024. Em todos os casos, eles prestaram depoimentos e foram liberados. >
A prisão do segundo filho foi em flagrante, por armazenagem de material explosivo em situação irregular. Quase três milhões de fogos foram apreendidos, além de 61 quilos de bombas a granel armazenadas em sacos plásticos. Três locais de produção foram interditados. >
O que mudou foi a forma como a produção acontece. “Está descentralizada, mais invisível. Não tem mais uma fábrica que concentra o estoque de pólvora. Os produtores fazem isso nos fundos de residências para que a fiscalização não identifique”, explica o procurador Ilan Fonseca. >
Ele diz que a maioria dos trabalhadores envolvidos segue sendo formada por mulheres, assim como era no caso da explosão de 1998. Na tragédia, 64 pessoas morreram e apenas uma era homem. Na verdade, um menino, de 11 anos. Não era incomum que crianças trabalhassem no local que explodiu. O acidente deixou 20 crianças mortas. >
11 de dezembro de 1998 >
Alex Santos, hoje com 39 anos, trabalhou na fábrica ao lado da mãe, Marise, que tinha 36 anos quando morreu no acidente. No dia 11 de dezembro de 1998, quando tudo aconteceu, Alex não estava trabalhando. “A tenda ficava no meio do pasto. Uma semana antes, um boi invadiu e todo mundo saiu correndo. Eu caí e desci rolando o barranco, me ralei todo e, por isso, fiquei um tempo sem ir para a fábrica”, lembra. >
A jornalista Andréa Silva, hoje apresentadora do Bahia Meio Dia, lembra que estava trabalhando na TV Bahia naquele dia e, quando a notícia chegou em Salvador, foi de helicóptero para Santo Antônio de Jesus. “Foi triste o que nós vimos, era um cenário de destruição. Ainda estava acontecendo o trabalho de retirada de corpos. Aquilo me marcou muito. Nós pousamos e começamos a buscar relatos de pessoas. Eu fui para a porta de um hospital e a gente via as pessoas chegando desesperadas”, relata. >
Alex e o irmão foram criados pelo pai e a dor da perda da mãe nunca ou. Quando começou a cursar História na Universidade do Estado da Bahia depois de anos trabalhando como segurança da instituição, ele não pensou duas vezes sobre qual seria o tema do seu Trabalho de Conclusão de Curso. O resultado é um documentário sobre os órfãos da tragédia, que foi lançado no dia 11 de dezembro de 2024, no aniversário de 26 anos da explosão. >
O caso deixou somente seis sobreviventes, como conta Alex. Para essas pessoas e para as que perderam parentes, a vida mudou. Para outros moradores da localidade, a fabricação clandestina de fogos continua sendo a fonte de renda. >
É o que relata a jornalista Amélia Vieira, repórter do Correio na época, que escreveu reportagens sobre o caso e foi a Santo Antônio de Jesus anos depois do ocorrido. “Tinham as famílias que começaram a se dar conta do que aconteceu, do perigo, da baixa remuneração, das condições insalubres. Aí veio a revolta e a luta por justiça. Antes, a comunidade não tinha essa consciência”, relata. >
“E tinham as pessoas que voltaram a trabalhar com a produção de fogos. E por que isso? Porque não tem emprego. Eram pessoas de baixíssima renda, uma comunidade muito pobre”, acrescenta Amélia. >
Trabalho de combate >
O MPT reconhece o cenário e a necessidade de ações mais amplas para o combate efetivo à atividade. “A gente sabe que é algo que gera renda para a população, então é preciso um trabalho maior, além do nosso trabalho também de conscientização da população sobre os perigos que estão correndo. E é necessário que as pessoas não comprem esses fogos clandestinos”, alerta o procurador Ilan Fonseca.>
Ele orienta que o consumidor deve garantir que o produto tenha embalagem com identificação do fabricante. Outra dica importante é exigir emissão de nota fiscal. A Coordenação de Fiscalização de Produtos Controlados (CFPC) acrescenta que a autorização da CFPC deve ser exibida em local visível do estabelecimento que comercializa os fogos junto com o alvará de funcionamento e os clientes podem e devem solicitar o a estes documentos. >
Ricardo Cielo, que atua com ligação e manuseio de fogos de artifício, compartilha que a Associação Baiana de Pirotecnia foi criada em 2024 para somar forças contra a clandestinidade. “Com a repercussão mundial do caso de 1998, houve evolução a nível de regras e preocupação. Infelizmente, quanto mais exigências, mais clandestinidade. Mas a gente defende que a lei tem que ser cumprida porque estamos lidando com produtos controlados. Um dos nossos trabalhos é o de conscientizar e orientar esses produtores rumo à legalização”, diz o presidente. >
No caso de 1998, foram constatadas uma série de irregularidades, incluindo a falta de segurança nas instalações, utilização de depósitos não registrados junto aos locais de fabricação, armazenamento indevido de materiais explosivos no mesmo depósito, falta de extintores de incêndio e falta de justificativa da origem de parte dos produtos controlados. >
Após a explosão, foram instaurados processos istrativo, civis, trabalhistas e penal. Cinco pessoas foram condenadas em 2010, mas nenhuma foi presa. Segundo o projeto Réu Brasil, Osvaldo, conhecido como Vardo dos Fogos, tinha sido condenado em 1996 em processo penal por uma explosão ocorrida no contexto da produção de fogos de artifício e continuou com as atividades. >
O Brasil foi condenado, em 2020, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, considerando o país responsável por uma série de violações. Segundo a Defensoria Pública da União, em 2023 foi feito um mutirão de atendimento aos familiares e às vítimas de explosão para formalizar os acordos para o pagamento das indenizações de forma extrajudicial em decorrência da condenação de 2020. Segundo o órgão, todas os familiares das vítimas já foram indenizados pela União. Os valores pagos não foram divulgados. >
Em 1999, o registro da empresa envolvida na explosão foi cancelado definitivamente. Os familiares de Vardo dos Fogos estão proibidos por liminar obtida pelo MPT junto à Justiça do Trabalho de produzir, armazenar, transportar e comercializar fogos de artifício e suas matérias-primas. >
O procurador Ilan Fonseca explica por que, apesar dos flagrantes dos últimos anos, os envolvidos que mantêm a produção clandestina estão soltos. “Pela legislação, esse crime é considerado de menor potencial ofensivo. Se você tem dois quilos ou duas toneladas de pólvora, o crime é o mesmo. A pessoa é detida e, depois de dar depoimento, é liberada e o inquérito penal vai correr”, diz. Ele acrescenta que uma multa de 200 mil reais por dia foi estipulada para caso de descumprimento da liminar e essa é uma das punições que estão sendo cobradas.>
O CORREIO entrou em contato com Gilson e Ariosvaldo Prazeres, filhos de Vardo dos Fogos citados pelo MPT. Gilson disse que fabricou fogos até 2010, quando a fábrica que comandava foi desativada, e que nunca produziu ou vendeu produtos clandestinos, sempre atuando com autorização dos órgãos competentes. Ariosvaldo não respondeu até o fechamento da reportagem. >
Alex destaca que luta por Justiça e que “o valor da indenização não é comparável com o amor de mãe perdido”. Para gravar o documentário, ele retornou pela primeira vez ao local do acidente e conta o que sentiu. “Fiquei indignado que não tem um memorial lá; hoje é uma área invadida. Se fosse em outro lugar, já teria memorial, filme, livro. Mas estamos falando do interior da Bahia, de uma história de uma comunidade periférica, de mulheres negras”, lamenta. >
Documentário>
O documentário "Órfãos do 11 de dezembro" foi lançado no dia 11 de dezembro de 2024 e está disponível no YouTube. O audiovisual é dirigido por Alex da Conceição dos Santos, sob orientação do professor da Uneb Johny Guimarães da Silva. Também participam da produção Tau Tourinho e Vagner Rodrigues da Silva. >